Por muitas décadas, o carburador foi o principal dispositivo de alimentação dos motores ciclo Otto. Principal porque o sistema de alimentação por injeção pressurizada existe há muito tempo. No entanto, devido ao seu elevadíssimo preço, era destinada apenas a alguns veículos de competição e aeronaves de combate.
A simplicidade do princípio de funcionamento do carburador (tubo de Venturi) permitiu a criação de inúmeros projetos ao longo das décadas. Consequentemente, pode-se encontrar no mercado, ainda hoje, desde os modelos mais simples até os mais complicados, sofisticados, repletos de “penduricalhos”. Aos olhos inexperientes ou digitalmente dependentes (“se não tiver um chip programável dentro, não presta”), o carburador representa o primitivismo tecnológico. Algo tosco que fornece o mínimo para que um motor funcione. Um “dinossauro” construído na base da tentativa e erro e cujos recursos são extremamente limitados.
Só que isso não é verdade.
A) O projeto e desenvolvimento de um carburador envolve profundos estudos de: mecânica dos fluidos, dinâmica (alavancas), transferência de calor, dilatação térmica, elementos de construção de máquinas, metrologia e ajustes mecânicos, ciclos motores, ensaios de motores (dinamometria), química (corrosão), elétrica (interruptores, aquecimento, solenoides) e processos de fabricação (fundição, usinagem, tratamento superficial, injeção de plástico).
B) Um carburador proporciona alimentação adequada para praticamente todos os regimes de funcionamento de um motor ciclo Otto. Desde a partida a frio até as acelerações. Os vícios de funcionamento (defeitos crônicos), na sua grande maioria, são oriundos de erros de projeto ou adaptação de projeto (muitos projetos de carburadores foram adaptados a novos motores) e erros no projeto de instalação do carburador no motor. Já os vícios intermitentes (os defeitos do dia a dia que podem ser sanados) têm origem no desgaste e problemas na manutenção. De resto, funciona, e funciona muito bem.
Esses dispositivos, desde que devidamente equipados e conservados, conseguem proporcionar entre outros recursos: partida a frio rápida, compensação a rotação de marcha lenta durante a utilização de ar-condicionado e outros acessórios (transmissão automática), abertura estágios de alimentação sequenciados, marcha lenta suave e regular, acelerações rápidas e baixo consumo de combustível (no final dos anos 70 e início dos anos 80, bem no auge da crise do petróleo, a montadora de um certo modelo de veículo sedã classe média, equipado com motor 1.4 alimentado por um carburador simples, se orgulhava em anunciar, na mídia, que o consumo desse veículo podia chegar a 15 km/litro).
Ou seja, se o carburador não funcionasse bem, até hoje não seria produzido e comercializado, principalmente nos Estados Unidos, para determinadas aplicações.
MAS ENTÃO, POR QUE O CARBURADOR FOI ABANDONADO?
A resposta é muito simples: emissão de poluentes. Desde os anos 80, a crescente demanda por índices de emissão cada vez menores forçou os fabricantes a desenvolver novos motores que funcionassem satisfatoriamente com misturas cada vez mais pobres, e precisamente dosadas, para todos os regimes de funcionamento. Nessa nova realidade, cada grama de poluente emitida faz diferença.
Dosagens essas que a limitação tecnológica do carburador (mecânica como princípio de funcionamento) não consegue mais atender. Apenas um controle rigoroso, feito por uma unidade de controle microprocessada, consegue fazer os ajustes necessários no tempo necessário para atender as novas exigências. Nasceu então o sistema de injeção eletrônica, que vem sendo constantemente atualizado. E, com isso, o carburador foi sendo deixado de lado e caindo no esquecimento.
Nos áureos tempos da alimentação por carburador, ser um especialista no assunto era ser uma estrela no mercado. E não era por menos. Estamos falando de uma época onde o combustível era raro e caríssimo. Um motor mal alimentado podia prejudicar o orçamento doméstico. A palavra de ordem era: regular o motor.
Foi a época de ouro das oficinas especializadas, equipadas com caríssimos analisadores de motores, com osciloscópio de tela grande (que ajudava muito nos diagnósticos do sistema de ignição) e laboratório com ferramental espacial (parecia uma sala de cirurgia). Os manuais de serviço e os catálogos de peça eram guardados a 7 chaves. Ali estava parte do segredo: as regulagens e as folgas que deveriam ser aplicados nos delicados componentes.
Ter um certificado dos dois disputadíssimos cursos de manutenção de carburador na parede da oficina era um privilégio para poucos. As vagas eram limitadas. Fazer um curso de regulagem de motor (Turn-up) na escola da gigante norteamericana, fabricante de analisadores de motores? Era outro diferencial. Ser uma oficina autorizada das marcas de carburadores ou de sistemas de ignição? Simplesmente o “must”.
Limpeza? Descarbonizante químico e lavagem com água (não havia cubas de ultrassom). Peças de reposição? Somente as genuínas. Desgastou? Troca. Nada de ajustes ou gambiarras. O motor não “pegou regulagem”? Problema mecânico que precisa ser consertado. Essa era a regra.
Mais raros ainda eram os analisadores de gases. Além de caros, a emissão não importava muito. Poucos ajustavam os motores pelos limites de emissão. Nessa época, o importante era ter um motor “redondo” e que consumisse o mínimo possível. A coisa só começou a mudar de figura quando surgiram os catalisadores. Excesso de emissão (HC) encurtava bastante a vida dessa nova peça, que custava muito caro. Mas ocorria sem neura. Sem aquele medo de não poder licenciar o veículo se o conserto não coubesse dentro do bolso. Não dava para fazer tudo, fazia-se uma parte.
MANUTENÇÃO ESQUECIDA?
Com o passar do tempo, e a penetração cada vez maior dos sistemas de in jeção eletrônica, o carburador foi sendo deixado de lado. Posteriormente, não sendo mais produzido, assim como, as suas peças de reposição. Quase esquecido por completo.
Os mestres? Bem, muitos estudaram a nova tecnologia, se reinventaram e hoje são especialistas em eletrônica embarcada. Outros não conseguiram, ou não quiseram, e acabaram por sair do mercado. Alguns poucos insistiram e seguem firmes e fortes nesse nicho. São a tábua de salvação de muita gente. E outros, infelizmente, não estão mais entre nós. Afinal de contas, 30 anos já se foram. Isso quer dizer que o carburador está morto e a arte de repará-los esquecida? Claro que não! Ainda existem muitos veículos carburados rodando por aí. Mas muitos mesmo. Além do mais, o antigomobilismo virou uma febre no Brasil. Um nicho do marcado do luxo, onde não existe miséria.
E esse mercado é tão bom, que uma das fabricantes de carburador voltou a produzir. Sim! Carburadores novos em folha, além de peças de reposição. Isso sem falar das importações de réplicas de carburadores, daquela outra marca famosa. Peças de ignição? Sim, pelo menos duas empresas nacionais estão se dedicando a produzir peças de reposição para sistemas com distribuidor.
Então existe lugar para novos profissionais nessa arte? Sim, com certeza. Mas lembre-se: é um universo diferente. Onde tudo é mais simples, porém mais complicado, ao mesmo tempo.
Como assim? A tecnologia é mais simples e os diagnósticos também. Mas o resultado está intimamente ligado ao detalhe e ao capricho. Como um relojoeiro.
Um universo onde se mede o nível de um reservatório com um paquímetro, se ajusta o volume de injeção com calços finos, onde uma folga mínima em um eixo de borboleta ou um empenamento de base provoca sérias falhas de marcha lenta. O segredo está no detalhe. Não basta trocar a peça. É preciso ajustá-la no lugar com uma folga especificada, por vezes medida em décimos de milímetro. Seguir o manual e as tabelas de calibração é vital, pois, cada aplicação de um mesmo carburador tem uma calibração diferente. Ou seja: utiliza peças diferentes. Misturá-las pode ser desastroso. Não se inventam especificações. Coisa de “mecânico raiz”.
Além disso, é preciso ter cuidado. Esse mercado é muito exigente. Serviço mal feito (incompetência ou falta de ferramental), desrespeito com o veículo antigo, assim como, desculpas esfarrapadas: nada disso é aceito.
E o primeiro passo para entrar nesse seleto meio é se instruir. Ou seja: fazer cursos. Depois adquirir manuais, catálogos e ferramentas especiais. Por fim, um estágio ou uma boa conversa com os mestres remanescentes fará muito bem ao novo aprendiz. E o mercado agradece.
Por Fernando Landulfo
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